Fonte. Ribamar Corrêa
Monsenhor Hélio Maranhão, falecido dia 09 de Novembro/2015, aos 85 anos, se não foi exatamente um homem muito além do seu tempo, construiu uma trajetória como um rompedor de paradigmas incômodos ao longo da sua vida. Muitos viam nele somente o sacerdote de atitudes e posturas nada convencionais e muitas vezes totalmente incompatíveis com as de um padre no sentido formal; alguns o identificavam como um intelectual, mas versado em cultura religiosa e canônica, o que o isolava culturalmente; outros o apontavam como o homem vivenciado e fortemente posicionado diante da sociedade e das instituições; e, finalmente, os que enxergavam nele apenas o religioso-oficial ativo na função pública de capelão da Polícia Militar do Maranhão, que em atos solenes chamava a atenção com sua batina preta ornada com alamares, estrelas e medalhas. Uma versão justa desse personagem muito presente na vida maranhense terá de reunir todas essas faces e mais outras tão bem definidas e marcantes que fizeram dele um homem singular.
Quando se fala do religioso que alcançou o título honorífico de “monsenhor” – que coloca o sacerdote numa zona de prestígio entre o cônego e o bispo, mas que na estrutura da Igreja Católica significa fim de carreira hierárquica -, fala-se do padre ordenado em Roma e que muito jovem participou intensamente dos movimentos de reforma da Igreja iniciada pelo Papa João XXIII por meio do Concílio Vaticano II, que sacudiu as tradições mais duras da Igreja e impôs transformações radicais na relação da instituição com os fiéis católicos. Há quem diga que ele esteve na linha de frente do movimento de padres renovadores que mudou, por exemplo, o formato da missa – antes, o sacerdote a celebrava de costas para os fiéis, só a eles se dirigindo na homilia e na comunhão, e esse movimento conseguiu mudar a posição, passando o celebrante a ficar de frente para os presentes. Os estudos e a experiência o tornaram ao mesmo tempo um doutrinador militante e teólogo empenhado em reformar, se não a essência dos cânones, pelo menos a prática doutrinária do catolicismo, tendo deixado uma vasta obra sobre o tema. Uma das suas preocupações era impedir que o catolicismo fosse enfraquecido pelo reformismo evangélico.
Na condição de sacerdote, Hélio Maranhão atuou fortemente como chefe de paróquia em Barra do Corda – sua cidade natal, onde nasceu em 1930 -, em Tutóia – onde demorou-se por mais de uma década -, e em Codó, onde também deixou marcas. Atuou como líder da Igreja, evangelizador, pregador sacro e educador. Foi também o militante político no sentido informal, desvinculado de partidos e ideologias. Sua formação na esteira do Concílio Vaticano II ganhou forte influência da ala esquerda da Igreja que na América Latina viria a prosperar nos anos 60 e 70 como a Teologia da Libertação, responsável por movimentos revolucionários, que no Brasil ganhou expressão maior com Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, e Dom Pedro Casaldáliga, no Mato Grosso, por exemplo. Preocupado com a divisão da terra e defensor de uma reforma agrária para resolver conflitos no campo, o então Padre Hélio Maranhão foi um dos precursores dos movimentos que para ele foram embriões das Assembleias Eclesiais de Base, conforme uma série de relatos que ele deixou em pequenas brochuras pouco conhecidas.
Como o movimento da chamada Igreja Progressista por uma reforma agrária radical no país era comandado pela esquerda do clero e ele, por fidelidade à religião, não se posicionou ideologicamente, viveu uma situação ímpar, sendo vigiado de perto pelos militares, que viam nele um esquerdista, e mal visto pela esquerda, na época liderada por padres como Vitor Asselin e militantes da esquerda clandestina, que o acusavam de fazer jogo duplo. E ficou pior aos olhos da esquerda quando, em 1979, aceitando pagar preço político alto, foi nomeado pelo governador João Castelo (PDS) para o cargo estratégico de presidente do Instituto de Terras do Maranhão (Iterma), com a tarefa de, se não fazer uma reforma agrária para valer, pelo menos para realizar um censo agrário e solucionar conflitos isolados, fazer assentamentos e conceder títulos de propriedade a famílias do campo. No cargo, Hélio Maranhão mexeu com uma série de formigueiros agrários e políticos, comprando brigas à direita com agentes da ditadura e alguns latifundiários, e à esquerda com grupos que o criticavam, às vezes contrariando até o governador, que ficava no fogo cruzado. O fato é que, bem ou mal, ele aplicou a famosa e polêmica Lei de Terras deixada pelo governador José Sarney e que, segundo o ex-presidente, foi alterada para pior pelo governador Pedro Neiva de Santana. É claro que a realidade mudou, a ditadura caiu e a Constituição Cidadã mudou tudo, mas não há registro de um período em que o Iterma foi tão ativo do que quando sob sua presidência.
Hélio Maranhão quebrou paradigmas nas situações mais simples e curiosas. No carnaval, por exemplo, quando religiosos costumam se recolher em retiros para se afastar das “tentações do demônio” ou até cumprir penitências, ele entrava na contramão, reunia um grupo de amigos – quase nenhum padre nem freira -, enfiava-se num vistoso fofão e saia pelas ruas de São Luís comandando um bloco carnavalesco atípico, no qual só era permitido tomar vinho tinto leve, e com parcimônia. Era também um excelente contador de “causos”, recolhidos das suas vivências paroquiais, e em muitos dos quais era ele próprio personagem central. Fascinado pelas letras, cultivava amizade com escritores e poetas, tanto que chegou à Academia Maranhense de Letras. E um desses poetas – o jovem advogado e deputado estadual Marconi Caldas, filho do influente desembargador votorinista Tácito Caldas – que numa animada roda de conversa, perguntou-lhe, à queima-roupa: “Padre Hélio, dizem que o senhor é namorador, é verdade? Sem perder a veia da tranquilidade, o sacerdote reformador respondeu: “Deputado, dizem muitas coisas a meu respeito. Mas o que posso lhe dizer é que tudo o que é feito com amor, Nosso Senhor abençoa”.
Foi o Monsenhor Hélio Maranhão de todos esses vieses que partiu ontem, deixando uma forte marca na história do seu tempo no Maranhão.
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